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Redescobrir a graça do silêncio

A humanidade foge cada vez mais do silêncio, e um dos motivos é o medo. Temos por vezes medo do silêncio porque confundimos silêncio com vazio. Temos receio do silêncio, fugimos dele utilizando mil artifícios: em nosso momento de oração nos perdemos nas redes sociais, em nosso tempo diário reservado ao silêncio interior conversamos animadamente com outras pessoas porque temos coisas muito ‘’urgentes’’ para resolver e que não podem esperar…não sabemos mais a diferença entre o ‘’urgente’’ e o ‘’importante’’. Há sempre muito o que fazer, o que resolver, o mundo parece que só espera por nossa ação decisiva em tantas de suas esferas. O som de palavras vazias ressoa sem cessar, os gritos animam as festas, as músicas se esvaziam de sentido com palavras por vezes até agressivas e de baixo calão. O homem não consegue calar-se, angustia-se tão logo silencia. O filósofo Pascal observou que «toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa: não saber ficar tranquilo num quarto» (Pensamentos, 139). Isso porque longe de Deus o silêncio torna-se um encontro com a própria miséria interior, realidade por demais dura a assumir: procura-se então a embriaguez do barulho e das múltiplas distrações para anestesiar a própria consciência.

Essa reação é consequência da experiência de um silêncio vazio, que não foi preenchido por uma palavra, a Palavra que dá sentido a cada realidade do mundo porque é seu núcleo mais profundo, é sua Verdade. O Santo Padre Francisco, em uma catequese sobre São José e o silêncio, fala sobre um versículo do livro da Sabedoria que é lido durante o tempo do Natal: ‘’quando a noite estava no silêncio mais profundo, Tua Palavra desceu à terra’’. E Santo Agostinho comenta: “Na medida em que cresce em nós a Palavra- o Verbo que se fez homem- diminuem as palavras.” (Sermão 288, 5: PL 38, 1307). São João Batista, que é «a voz que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor”» (Mt 3, 1), diz em relação ao Verbo: «Ele deve crescer e eu diminuir» (Jo 3, 30). «O Pai pronunciou uma palavra, e foi o Filho – comentou São João da Cruz – e ela fala sempre em eterno silêncio, e no silêncio deve ser ouvida pela alma» (Dichos de luz y amor, BAC, Madrid, 417, n. 99).

Nós todos -inclusive consagrados que devemos ser especialistas em silêncio- precisamos redescobrir a prática do silêncio, que é graça do Espírito Santo. Experimentar o gosto do silêncio, silêncio que não é vazio, mas habitado pela Trindade: “Eu encontrei o Céu na terra, o Céu é Deus e Ele mora em minha alma, e gostaria de partilhar essa Verdade com todos os que amo!” (S. Elizabeth da Trindade, Carta 122). Deus em nós, delícia eterna. Deus Vivo em nós, felicidade sem limites. Viver sob o olhar divino, ordenados por Sua Palavra Santa, e assim tantas palavras humanas que nos ferem não teriam poder algum sobre nós. O Papa Francisco ensina que o silêncio é “aquele espaço de interioridade nos nossos dias nos quais damos ao Espírito a oportunidade de nos regenerar, de nos consolar, de nos corrigir.” (Audiência Geral de 15 de dezembro de 2021) O Santo Padre continua:

“Muitas vezes estamos a fazer um trabalho e quando terminamos procuramos imediatamente o celular para fazer outra coisa, somos sempre assim. E isto não ajuda, faz-nos escorregar para a superficialidade. A profundidade do coração cresce com o silêncio, um silêncio que não é mutismo, como eu disse, mas que deixa espaço à sabedoria, à reflexão e ao Espírito Santo. Por vezes temos medo dos momentos de silêncio, mas não devemos recear! O silêncio far-nos-á muito bem» (Audiência Geral de 15 de dezembro de 2021).

Sem o silêncio, até a nossa fala pode adoecer: “Sem a prática do silêncio o nosso falar adoece. De fato, as nossas palavras podem tornar-se adulação, jactância, mentira, maledicência, calúnia. É um dado da experiência que, como nos lembra o Eclesiástico, «a língua mata mais do que a espada» (28, 18)” (Papa Francisco, Audiência Geral de 15 de dezembro de 2021).

Dom Fernando Areâs Rifan escreveu: “Diz o precioso livro A Imitação de Cristo: “Procura tempo oportuno para cuidar de ti e pensa, frequentemente, nos benefícios de Deus… Os maiores santos evitavam, quanto podiam, a convivência dos homens, preferindo viver a sós com Deus. Disse alguém: ‘Sempre que estive entre os homens menos homem voltei’. No silêncio e no sossego aperfeiçoa-se a alma devota e penetra os segredos das Escrituras” (Artigo para o site da CNBB de 21/07/2023).

Santo Agostinho lançou um apelo vibrante há muitos séculos, que continua de uma impressionante atualidade:  “Entrai de novo em vosso coração! Onde quereis ir para longe de vós? Ao ir longe, vos perdereis. Por que vos dirigis a estradas desertas? Retornai do vosso deambular que vos levastes para fora da estrada; voltai para o Senhor. Ele está pronto. Em primeiro lugar, retornai ao vosso coração, vós que vos tornastes estranhos a vós mesmos, vagando lá fora: não vos conheceis a vós mesmos, e procurais aquele que vos criou! Voltai, retornai ao coração, desprendei-vos do vosso corpo… Retornai ao coração: ali examinai o que se pode perceber de Deus, porque ali se encontra a imagem de Deus; na interioridade do homem mora Cristo, na vossa interioridade vos renovais segundo a imagem de Deus” (InIoh.Ev.,18,10CCL36,p.186).

O Cardeal Raniero Cantalamessa nos exorta: “Creio que em muitos ambientes religiosos exista o dilema: Ou o silêncio ou a morte! Ou encontramos um clima e tempos de silêncio e interioridade ou é o esvaziamento espiritual progressivo e total. Jesus chama o inferno de “as trevas exteriores” (cf. Mt 8,12) e esta designação é muito significativa” (Pregação na quaresma de 2019 para a Cúria Romana).

O Cardeal Newman, canonizado pelo Papa Francisco, disse certa vez que ‘’quanto mais perto estamos do Espírito Santo, mais silenciosos ficamos; e quanto mais nos afastamos, mais charlatães.’’ Mas não se trata de ficar calado, deixando-se morrer em um tédio que seria uma expressão da falência do desejo de viver. O silêncio cristão é ativo, é calar-se para escutar a Voz de Deus. É interiorização para entrar em um diálogo amoroso com o Criador que tem uma palavra de vida a pronunciar sobre nós. E tem também uma palavra de vida que devemos levar ao homem de hoje, palavra que se transforma em missão. Quanto mais amigos do silêncio, mais missionários seremos, porque portaremos em nós uma Palavra que não é criatural, criada por nós mesmos, mas a Palavra de Deus que se encarna na vida do outro. Palavra do tipo daquela que Jesus gritou após um momento de silêncio: “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11,43), vem para a Vida!

São João Crisóstomo dizia que só deveríamos falar quando falar fosse mais útil do que nos calar. O silêncio abre espaço para a reflexão, fazendo-nos assim plenamente homens, seres racionais, reflexivos, que não agem pelo impulso. Certo homem de Deus disse que o silêncio não é o exílio da palavra, mas o amor da Palavra Única. A descrença é sempre falante.

Santo Anselmo de Aoste aconselha seus leitores a buscarem a solidão e o silêncio com frequência: “Vamos, homenzinho, abandona as tuas ocupações por um momento, esconde-te um pouco dos teus pensamentos tumultuados. Abandone agora as suas pesadas preocupações, adie os seus compromissos laboriosos. Dedique-se a Deus por um tempo e descanse nele. Entra na câmara do teu espírito, exclui tudo dela, exceto Deus e tudo o que te ajude a buscá-lo, e quando fechardes a porta (Mt 6, 6), buscai-o. Dize agora, ó meu coração, na tua totalidade, dize agora a Deus: “Busco o teu rosto; o teu rosto, ó Senhor, eu busco” (Sl 27,8). (Início do Proslogion).

Que o Senhor nos ajude a redescobrir a riqueza e a beleza do silêncio sagrado, oracional. Nossa alma tem sede de Deus e essa sede jamais será saciada na azáfama, no barulho e na busca desenfreada de um protagonismo no mundo que é fruto apenas de um agir estéril. Sim, a ‘’nossa fortaleza está no silêncio que alimenta nossa esperança!’’ (Sl 61,2) Só assim veremos a ‘’glória da Palavra’’, pois « … a Palavra se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória.” (Jo 1,14).

Fonte: Shalom